Costa Rica – Parques nacionais de sucesso

Cahuita: o entorno no êxito de um processo

Marinho e discreto, o Parque Nacional de Cahuita, no Caribe costarriquenho mostra o quanto população local e gestores ambientais precisam trabalhar juntos. Não se trata de trajetória cômoda, sem rusgas. Mas deixa patente que a negociação e o entendimento é o que leva ao sucesso na lide com o meio ambiente.

 

Cahuita é nome sonoro. Em misquito – idioma de uma nação indígena de Honduras e Nicarágua, ex-aliada de piratas britânicos em saques contumazes do litoral caribenho da Costa Rica do século XVII e, mais tarde, parceira dos “contras” no combate a sandinistas –, significa “ponta de sangrillo”. Faz alusão a um tipo de arbusto que dá frutos e cujo látex é vermelho. Designa um povoado da província de Limón, que avança pelo mar na costa atlântica costarriquenha, onde um parque nacional de 240  quilômetros quadrados se espraia à beira de e sob o oceano, entre praia, floresta e recifes. Sobretudo, o Parque Nacional de Cahuita é algo especial para a administração de áreas de conservação ambiental: um legítimo case, no jargão norte-americano.

Nem tanto por conta da iniciativa dos gestores do parque. Muito mais, mas muito mais mesmo, pela ação dos seus ex-“habitantes”, isto é, a população daquilo que hoje em dia se costuma definir como seu entorno. Em 32 anos, eles foram do conflito à negociação para chegar à gestão compartilhada – a solução.

O de Cahuita é o quinto parque nacional mais visitado da Costa Rica: em 2008, recebeu 7% do total de 1,37 milhão de turistas que estiveram nessas 28 unidades de conservação do País. Em 2009, ano em que a crise financeira internacional forçou recuo significativo no número de turistas estrangeiros que visitaram a América Central, por uma das duas entradas do Cahuita, a de Playa Blanca, lindeira às ruas do povoado. Ali passaram, sem pagar ingressos, 10% menos visitantes que no ano anterior. Ainda assim, o Parque manteve sua classificação.

Para entender esta história, melhor começar conhecendo o que é a porção caribenha da Costa Rica, esse país onde 86% da população é branca e que abriga pouco mais de um décimo dos 40 milhões de habitantes da América Central em pouco menos de 10% de seu território.

Do Valle Central, onde fica a capital San José, leva-se quatro horas de automóvel para chegar a Cahuita. No caminho, vai-se de quase 3.000 metros de altura, na Cordilheira Vulcânica Central, até o nível do mar em Limón, província composta por seis áreas municipais e sede do principal porto do País. Nela vive a maioria dos negros costarriquenhos, fatia de 3% da população, quase três vezes superior à indígena, residente em boa parte na zona caribenha da Costa Rica.

Sim, porque se as cordilheiras que atravessam o interior do país o dividem geograficamente em duas zonas – do Pacífico e do Atlântico –, em declives cobertos por florestas primárias densas, na direção do Leste, também se pode dizer que elas dividem a nação entre um Caribe mais pobre e um Valle Central e um Pacífico bem mais rico e branco. Limón é a província das minorias raciais. Ali, os brancos que assim se declararam no último censo são 70% da população. E em Cahuita, apenas 50%.

Puerto Limón foi onde, na segunda metade do século XVII, desembarcaram os primeiros africanos: uns poucos escravos importados para trabalhar na lavoura do cacau nos municípios Matina. Seus descendentes se integraram à sociedade dos colonizadores espanhóis e com eles se miscigenaram, indo viver no Valle Central.

Em maior número, tiveram destino distinto os afrocaribenhos: de fala inglesa, vieram da ainda britânica Jamaica, a partir de 1873, para trabalhar como assalariados na construção da estrada de ferro que rasgou a Costa Rica para levar o café até o Atlântico.

No máximo, esse grupo negro se integrou com os indígenas locais, das nações Cabekar, Teribe ou Naso e Bribri. Particularmente com esta última, a mais costeira, que hoje ainda reúne 3.000 pessoas na reserva indígena de Talamanca, nome de outra cidade de Limón e de uma majestosa cordilheira binacional, derivado igualmente do idioma dos misquitos. Seu significado? “Lugar de sangue”.

Sim, os Bribri sempre foram valentes. Gente que protagonizou vários episódios de resistência à colonização espanhola ao longo dos séculos. Os afrocaribenhos que a eles se integraram, adotando a linhagem matrilineal indígena, acabaram usufruindo de vantagens da resistência protagonizada já no início do século XX, aos abusos trabalhistas da United Fruit & Co, a companhia norte-americana que desenvolveu o cultivo da banana às margens da já falida estrada de ferro centro-americana.

Mas nem todos os negros se integraram – e ainda hoje, enfrentam boa dose de segregação na sociedade costarriquenha. Quem quer que passeie por Limón dificilmente deixará de ouvir diálogos em patois. Ou não verá sobrados como esse, na foto, de típica arquitetura afrocaribenha.

Puerto Limón segue sendo o maior porto do país. Sede da província, fica a 42 quilômetros do povoado Cahuita. Com cerca de 70 mil habitantes, mescla alguma pujança com a mata e muito descaso. Os turistas desembarcam de suntuosos transatlânticos em um terminal especial de seu porto, construído com capital germânico para possibilitar esses cruzeiros.

Muitos deles chegam para praticar um surf de primeira por ali – o que nem sempre as ondas favorecem nas praias da costa limonense. E quase sempre engrossam as estatísticas dos visitantes do Parque Nacional de Cahuita, atraídos pela idéia de conviver com fauna e  floresta ao lado de uma praia de águas claras.

William Smith. Assim se chamou o pescador de tartarugas afro-caribenho que, do Panamá, vinha anualmente ao local, atrás delas e de seus ovos. Acabou, em 1828, dono de uma fazenda bem ali, no terreno onde está a Ponta de Cahuita. Foi seu primeiro povoador. Pelo local passou, em 1915, o ex-presidente da Costa Rica, Alfredo Gonzáles Flores, a bordo da lancha a motor Cristina, depois de ter ido visitar o Rio Sixaola, na fronteira com o Panamá, debaixo de um aguaceiro de fazer dó. Dessa viagem em mar para lá de revolto, nasceu o que, a partir de 1978, seria o Parque Nacional de Cahuita.

A despeito das dúvidas do ex-presidente, o motorista da lancha disse que não era perigoso navegar de volta até Puerto Limón. Mas a Cristina acabou se acidentando de vez, próximo ao Riacho Tuba, ao norte de Cahuita, em cuja praia a comitiva, digamos assim… desembarcou. Alguns de seus integrantes já estavam nus.

Passaram a noite sob os cuidados da população local e, no dia seguinte, o mandatário viajou a cavalo até Limón.

Dias depois, Flores voltou para agradecer a acolhida e perguntou por quanto Smith venderia sua terra. Negócio fechado por 500 colóns, o presidente dividiu no ato a área em quatro praças e separou cada uma em seis lotes: deu um a cada um dos presentes, com título de propriedade e tudo mais. Falecido Smith, famílias do outro lado da ponta ergueram ali, suas casas de madeira e zinco.

O professor Claudio Reid Brown chegou a Cahuita em 1960. As ruas eram verdes e as pessoas viviam como se fossem uma só família. Pescavam, plantavam coco, mandioca, pêssego e milho. Na escola, ele ensinava todos a fazerem contas. Dez anos depois, chegou a notícia: o recife, dotado de 35 espécies de corais, além de outras 14 de moluscos, 44 tipos de crustáceos, 128 variedade de algas e 123 espécie de peixes, ao redor de Ponta Cahuita, foi declarado monumento nacional.

Trata-se de categoria de proteção ambiental segundo a qual o Estado responde não apenas pelos recifes, como pelas construções históricas da zona e dos diversos ecossistemas marinhos do local. 

Sem acesso à capital do País por estrada até 1976, a população de Cahuita não gostou da decisão a respeito da qual ninguém previamente a consultara.

Como também não gostou quando, em 1978, o governo decretou que a área seria parque nacional, mas abrangendo, desta vez, além dos 600 hectares de recifes, 22.400 hectares marinhos e outros 1.067 terrestres.

Uma vez parque nacional, em Cahuita ficaram proibidas atividades florestais, a caça a aves e tartarugas, além de animais. Ali existem macacos perezosos de três dedos, texugos e quatis, bem como ecossistemas e mangues. Os corais não mais puderam ser extraídos. Qualquer atividade comercial, agrícola ou industrial que prejudique os recursos naturais é ilegal. A pesca passou a sofrer restrições severas.

“O povo não gostou porque quem vinha aqui não gastava nada e, sobretudo, estava invadindo nossa terra”, recorda Brown. Afro-caribenho, aposentado aos 65 anos de idade, ele usa a expressão “força psicológica” para definir como a área foi evacuada. Àquela altura, a população se dividia pelas praias – habitava a área da antiga fazenda e plantava na abrangida pelo Parque, próxima à Ponta e já desmatada. A monilla, uma praga agrícola, liquidou com o cacau. Então os turistas se tornaram a fonte de renda.

Edwin Cyrus é da quarta geração de imigrantes afrocaribenhos. Agrônomo, é especialista em avaliação de recursos florestais e mestre em sistemas de informação. Mais antigo entre os diretores de áreas de conservação na Costa Rica, ele responde há 16 anos pela de La Amistad-Caribe, que inclui o Parque Nacional de Cahuita. “Tiraram o pessoal de Cahuita e não lhes pagaram”, relata.

Antes mesmo do decreto, a comunidade de Cahuita se mobilizara. Em 1972, foi criada uma comissão extra-oficial, com funcionários governamentais e líderes locais, que propôs ao Legislativo do País a revisão da mudança de categoria ambiental da área protegida. Um ano antes da decisão, as partes – governo federal e comunidade – já haviam chegado a um acordo, encaminhado ao então presidente da República, Daniel Oduber. Nele reconheciam que a comunidade local era presença que ajudava a preservar o meio ambiente e permitiam à população que ficasse onde residia, realizando atividades de subsistência desde que não ultrapassasse a área já ocupada ou alterasse sua forma usual de trabalho. Propunham a realização de um estudo sócio-econômico sobre a situação fundiária da área em que se criaria o Parque Nacional de Cahuita.

Detectou-se no estudo, que 87% da área pertenciam a pequenos agricultores, dos quais 93% não queriam vender suas terras. O acordo caiu por terra e baixou-se o decreto criando o Monumento Nacional. O governo concordou em pagar uma compensação aos afetados pelo ato, mas a crise da dívida externa dos anos 1980 impediu que a conta fosse liquidada. O calote foi auxiliado pela dificuldade dos moradores em apresentar a documentação integral necessária. Somente dez proprietários foram indenizados, embora 25 dos 71 que deveriam sê-lo, tivessem os documentos requeridos.

Mesmo antes disso, a legislação ambiental já tinha provocado mais problemas na área. Tornou posse pública, em 1977, uma faixa terrestre de 200 metros a partir da orla marítima, alijando mais gente de sua propriedade na costa de Cahuita. Assim, o monilla acabou sendo providencial para o sucesso do governo e da lei.

Brown qualifica o efeito do fungo como parte integrante da “força psicológica” a que se refere para explicar o modo pelo qual a área do parque foi evacuada. Afinal, quem tinha cultivo dentro da área passou a preferir vender sua terra, diante da colheita de cacau perdida, e quem resistia a abandonar seu modo de vida tradicional e viver de turismo encontrou nele a única alternativa possível. Como, aliás, descrevem os especialistas Viviane Weitzner e Marvin Fonseca Borráz, em artigo publicado no livro Cultivar la paz: conflicto y colaboración en el manejo de los recursos naturales, compilado por Daniel Buckles.

Ator e escritor, o líder comunitário Brown comenta: “Eu não sei se trouxeram a monilla ou se ela veio sozinha. O fato é que Cahuita mudou, desde então”.

Surgiram pousadas, restaurantes, agências de turismo… A cultura calypsiana – com sua cozinha afro repleta de óleo de coco e muito sabor -, passou a conviver com problemas sociais crescentes, como a droga e o alcoolismo. Os poucos pescadores que sobrevivem na área, cerca de quinze, agora abastecem  os estabelecimentos comerciais do povoado com peixes e lagostas. E, para completar o orçamento, por muito tempo ofereceram lazer de mergulho e pesca esportiva aos visitantes. Já as comunidades vizinhas, que não vivem na praia de Cahuita, não se beneficiaram com a transformação. Sua subsistência, entretanto, hoje é garantida pelo Parque: caçam pequenos mamíferos e iguanas, na floresta, ou  tartarugas e respectivos ovos, na praia. Sempre que conseguem burlar a fiscalização, é claro.

Porém, o susto maior para os habitantes de Cahuita aconteceu em 1994, quando o governo aumentou o preço do ingresso nos parques do País. Até então, ele custara o equivalente a U$1,4 para um estrangeiro. Agora, custaria dez vezes mais. Para uma família de quatro pessoas entrar no Parque, o gasto subiria de cerca de U$7 para U$ 60. “Isso poderia fazer sentido em algumas áreas protegidas, pois quem arrecada é o sistema de parques nacionais. Mas em Cahuita, não faz: lá o Parque é parte do povoado”, comenta Cyrus.

Era a segunda investida oficial impondo mudanças ao modo de vida dessa população. Ao gastar mais com ingressos, o turista deixaria no povoado muito menos dinheiro e pensaria duas vezes antes de viajar da capital ou de Limón até o Parque.

Afinal, Playa Blanca, segundo acesso ao Parque, era “a praia” do povoado. Como eles poderiam ser impedidos de dispor dela, do dia para a noite, por um governo que lhes devia dinheiro? Uma bela manhã, o Parque amanheceu ocupado por obra de um comitê de luta formado por três líderes comunitários e pelo presidente da Associação de Desenvolvimento Integral de Cahuita, eleita pela população.  Todos se sentaram em frente dos dois portões em Playa Blanca e Puerto Vargas. Ali ficaram, jogando dominó. A cada visitante que chegava, diziam: “Senhor, não pague”. E o convidavam a entrar de graça.

Os funcionários haviam abandonado seus postos. Para os manifestantes, havia a lógica na compensação: “O governo nos tirou da terra sem pagar. Portanto, nós temos direito sobre ela”. E ninguém duvidava de que a preservação ambiental já era essencial a suas próprias vidas.

Dois incidentes de vandalismo afetaram veículos dos funcionários do Parque, durante esse piquete sócio-ecológico que durou semanas. Mas o governo também não reagiu com elegância: através do então Ministério dos Recursos Naturais Energia e Minério, publicou anúncios na restrita imprensa diária nacional advertindo turistas para não visitarem o Parque Nacional de Cahuita. O que só serviu para emagrecer a receita local e acirrar os ânimos. Na mesa de negociações com o Ministério, o comitê de luta exigiu o máximo: administraria o Parque e o governo quitaria a dívida com os proprietários, atrasada 16 anos.

No processo, aceitou uma posição intermediária, em que controlaria cinco dos 24 quilômetros do Parque, área que incluía o recife de corais que garantia poder cuidar. O governo não topou e contratou um biólogo para tratar do tesouro marinho.

A estratégia era pedir o máximo para não perder o essencial: o livre acesso aos dois quilômetros de praias adjacentes a Cahuita, em Playa Blanca. Sem eles, acreditava a comunidade, seu ganha–pão estaria perdido. De sua parte, o governo queria arrecadar mais para fortalecer a infraestrutura, serviços e conservação dos parques. Na enrascada em que se metera ao aumentar o preço do ingresso desse Parque inserido na área afro-bribri-caribenha do País, preferiu negociar a perder o controle do mesmo e, com isso, qualquer perspectiva de receita desse rentável integrante do Sistema Nacional de Áreas de Conservação, o SINAC.

Enquanto a briga durou, a comunidade cuidou do Parque: os funcionários se foram.  Como mediadora, atuou a defensoria da República, equivalente ao nosso Ministério Público. O acordo, porém, só saiu quase três anos depois.

A entrada no setor Playa Blanca, acesso aos dois quilômetros de praia entre o Riacho Kelly Creek e o Rio Suárez, passou a ser livre. Na do outro setor, o de Puerto Vargas, continuou-se cobrando ingressos pela tabela atualizada.

O governo se comprometeu a pagar o que devia aos expropriados. Uma comissão bipartite passou a cuidar do Parque. E a comunidade obteve autorização para aceitar e administrar doações que eventualmente recebesse dos turistas que entrassem pela portaria gratuita. Assim, em 1997, Cahuita ganhou um comitê de serviços para gerir parcialmente o Parque. Sua formação, por decreto, incluía os diretores da Área de Conservação La Amistad-Caribe e do Parque Nacional, além de dois membros da Associação de Desenvolvimento Integral, e um da Câmara de Turismo, ambas entidades locais. Em 13 anos essa equipe, que trabalha de graça, já logrou bons avanços.

O comitê tem obrigação de relatar o que faz à comunidade, mas esta é, ainda hoje, ação esporádica. Como a Controladoria Geral da República não o referendou, agiu extra-oficialmente por um ano, durante o qual conseguiu instalar sanitários, áreas específicas para camping, guarda-roupas, serviço de primeiros socorros e informação sobre a biodiversidade da área para os visitantes. E, na prática, acabou gerindo o Parque todo. Em 1998 deixou de ser de serviços para se tornar um conselho de manejo.

Então, o Cahuita ganhou um plano de uso – ainda não possui o de manejo. Mesmo assim, aos que medem gestão por números, parece intrigante notar que a receita obtida em Puerto Vargas tem sido inferior às doações dadas pelos turistas que ingressam nele por Playa Blanca. No 2008 pré-crise, por este setor entraram quase quatro vezes mais pessoas: 75.877 visitantes que doaram U$27 mil.

“O importante nem é a receita de Playa Blanca: é que a população ganha dinheiro oferecendo hospedagem, alimentação e serviços turísticos, pois o turista acaba ficando mais tempo na cidade”, sintetiza Brown. Desde que a co-gestão começou no Cahuita, paulatinamente as coisas avançam e a relação já não é mais de animosidade entre os representantes do Estado e o povo. Tanto que Brown chega a negar que, na ocasião da última crise, o governo tenha publicado anúncios desestimulando a ida de turistas ao Parque, apesar de ela estar documentada nos arquivos.

Hoje, a unidade conta com equipe de 19 guarda-parques, todos da comunidade local. Gente de fora veio viver na cidade, ao longo da última década, sobretudo franceses, italianos e suíços que trabalham com turismo. “Predominantemente afro-caribenha, a população daqui foi branqueando”, relata Cyrus.

Para o visitante que entra por Playa Blanca as melhoras já são evidentes. Ali começa um percurso de 8,3 quilômetros de trilha, quase a metade até a Punta Cahuita propriamente dita. Por toda ela, sempre paralela à praia, a limpeza é perfeita, como também são as pontes construídas para atravessar o Rio Suárez, já no caminho do portão de Puerto Vargas, e o Perezoso. São de madeira e foram feitas pela mão de obra local.

Logo no início do percurso, à direita, uma curiosidade que nem Brown conhecia direito até janeiro último: um poço de petróleo. Ou melhor, o rastro deixado pela tentativa desse país, conhecido por ser uma nação sobre um solo desprovido de riquezas minerais, em encontrar petróleo na área – fato ocorrido em 1910, cinco anos antes de o presidente Flores se encontrar com o fazendeiro Smith na região. Vã, ela deixou os restos de um poço aberto com 100 metros de profundidade dentro do que seria o Parque. Uma água enegrecida ainda brota do seu fundo, devidamente abafado por uma laje de concreto no interior do tanque da perfuração.

As doações auferidas em Playa Blanca já foram suficientes para se construir pequenos abrigos de descanso diante da praia _ três ranchos com churrasqueiras, três módulos de serviço com ducha pela trilha e banquinhos em tocos pelos caminhos, tudo em madeira. Há mais, porém: foi possível erguer uma casa para a administração, dotada de dois pisos, em Puerto Vargas. Sim, porque durante décadas a gerência do parque não teve uma sede onde operar. Ali almoçam todos os funcionários, diariamente.

Puerto Vargas é uma área de vegetação mais densa. Seu nome deriva de um píer ali construído em 1921, para que a madeira escoasse para Puerto Limón, cuja prefeitura construiu outro, sete anos após, ao lado do Rio Perezoso e próximo à Punta Cahuita, para facilitar o transporte de produtos agrícolas. Pela trilha deste setor, é frequente o turista encontrar os“macacos preguiçosos de três dedos”, singular exemplar que não pensa duas vezes em trombar com o que veja pela frente.

É uma espécie ameaçada que ganhou um centro para reprodução à margem da estrada que leva ao Parque, uma dessas iniciativas protagonizadas por ONGs amantes da Natureza tão fáceis de achar por toda a Costa Rica.

Do efetivo de funcionários, uma dezena toma conta de Puerto Vargas. Já os nove guarda-parques do setor Playa Blanca recebem seu salário graças à receita com doações de visitantes – e têm garantidos seus direitos sócio-trabalhistas. Esse dinheiro já deu também para construir um aqueduto que provê água potável ao Parque, até então carente de tubulação. A prodigalidade com que garante benefícios indica uma co-gestão, no mínimo, ativa.

O Cahuita já financiou projetos para a comunidade local: uma escola de educação básica, a compra de um quarto de hectare para erguer outra, de ensino secundário, e de um segundo terreno do mesmo porte para abrigar um asilo.Tais benesses são obtidas a partir de levantamento que a Associação, composta por 147 membros eleitos pelo povo da cidade, faz de suas próprias demandas ao Parque. Sua direção inclui representantes das empresas privadas, do governo municipal e dos cidadãos locais. “Atua como o olho da Prefeitura na cidade”, resume Brown. É rara a desaprovação de um pedido seu.

Falta dinheiro? Sim. Por isso, a suplência nos serviços estatais é tentativa constante. Por exemplo: a polícia turística de Talamanca ajudava com combustível a manutenção do único veículo do Parque Nacional de Cahuita. Em contrapartida, como seus homens não tinham como se hospedar e comer no povoado, o Parque lhes provia acomodação na sede de Puerto Vargas.

Mas, a rigor, a grande riqueza de Cahuita, definitivamente, está no mar. Não que ele seja um paraíso para surfistas. Mas tem um fundo, no mínimo, belíssimo. E riquíssimo.

Próximos da orla, os recifes de Cahuita são tridimensionais. Os corais que os construíram somam 35 espécies, como o cerebriforme e o chifres de veado. Lagostas, milhares de peixes coloridos e tartarugas frequentam as suas águas. Hoje em dia é proibido parar ou caminhar sobre os corais. O biólogo José Francisco Saballo,  nascido em Cahuita há 36 anos, é quem se ocupa do mar no Parque.

Todo dia em que a maré permite, ele sai de lancha desde Puerto Vargas com um colega da Força Pública para patrulhar as águas.

Ex-pescador, com a vida mais estável desde que se tornou funcionário do Ministério em 1999, a pesca ilegal é seu alvo nas patrulhas. A profissional é proibida por lei, mas um decreto da administração anterior a permitiu por ali na técnica de corda. O turismo local transgride a ordem utilizando anzóis. 

Saballo reclama de falta de recursos e apoio para dar conta do trabalho a contento. Quer uma lancha a mais, com 26 pés, para poder sair qualquer dia, um salva-vidas e um mergulhador, além de outro biólogo para completar a equipe. Sim, porque há muito a ser feito no mar de Cahuita. Ele se recorda de que, nos anos 1980, não se trabalhava a reciclagem no Parque – como de resto hoje, em toda Costa Rica urbana. Os barcos e os habitantes ribeirinhos jogavam detritos nos cursos de água que desembocavam na orla, o que ajudou a embranquecer e reduzir os corais. “Imagine que as pessoas se sentavam neles até pouco tempo atrás!”. Em 1991, o terremoto que abalou a área ceifou 50% dessas preciosidades.

Em monitoramento do recife de corais Meager Shoal, no Cahuita, as oceanógrafas  Ana Fonseca e Eva Salas e o biólogo Jorge Cortés, da Universidade de Costa Rica, concluíram, em 2006, que sedimentos da terra afetam cronicamente os corais e que estes não se recuperam desde 1970. De 2000 a 2004, apuraram que a área coberta por exemplares vivos evoluiu pouquíssimo, enquanto que a de algas encolheu significativamente. As colônias doentes ou descoloridas pelo aquecimento da água mantiveram o porte.

Saballo começou a procurar solução para outra ameaça ao tesouro submerso: o peixe-dragão-leão.

Dotado de barbatanas com longos e finos espinhos que exalam veneno quando comprimidos, esse peixe, que caça à noite e se abriga em recifes sob o sol, tem ali se alimentado de pargos e lagostas. Emigrou para a América Central há 16 anos, quando um tornado o expeliu do aquário em que vivia em Miami como emigrado de seu Oceano Índico natal. Apareceu em agosto de 2009 em Cahuita. Saballo e dois colegas o capturaram. Agora, ele investiga o mapa de sua atuação na área. Somente o pargo o dizima, mas a espécie não vive nesse litoral limonense.

De março a setembro, os recifes podem ser vistos pelo turista. É quando a água fica mais clara e a maré, mais alta. Antes, passeava-se por qualquer parte. Hoje, duas trilhas submarinas marcadas por bóias garantem acesso restrito aos corais Eduardo e Pollito.

Uma trilha submarina em cada zona do parque foi aberta com dinheiro de fora, da  The Nature Conservancy por meio do proejto Proarca/APM. Seus percursos foram discutidos com os operadores de turismo – mais um atestado da prioridade dada pelo Cahiuita à visitação.

Quando se sabe que, há 20 anos, o mar come a praia e há pontos onde já engoliu 25 metros dela, mas nada se fez para refrear o processo, a política equivocada salta aos olhos.Os estragos visíveis em Playa Blanca apontam para ações do homem: coqueiros dizimados por moradores, visitantes que caparam cocos de árvores que não se renovaram ao longo das últimas décadas e escaravelhos que hoje fazem  palmeiras adoecer.Saballo procurou uma saída: o plantio de espécies endêmicas que “segurariam” a areia. E descobriu quais são elas.

Conta o biólogo que tal plantio chegou a figurar no rol de projetos do Parque, sempre viabilizados com recursos externos. Mas a engenheira florestal Lucrecia Monterosso, atual administradora do Cahuita, preferiu tocar outros, de infraestrutura para visitação, com desembolso e resultados mais rápidos. Assim, a cobertura vegetal segue preservada apenas nos 4 quilômetros finais do Parque, até a foz do Rio Carbón, onde não há trilhas e o turismo é vedado. É o paraíso de tartarugas marinhas carey, cor café dourado e 45 quilos alimentados por esponjas, caracóis, caranguejos e peixes dos corais.

Nessas areias, elas depositam seus ovos, como o fazem no litoral baiano. Sua carne é manjar na China e sua reprodução, lenta: há 14 anos, é citada como em perigo crítico de extinção.

No rol dos parques nacionais costarriquenhos, o de Cahuita, com seu calmo encanto, é contraponto ao do Volcán Poás, onde a promessa de perigo seduz os visitantes. Afinal, o caribenho logrou aquilo de que carece o Parque tido como o melhor administrado da Costa Rica.

Ambos dependem, sobretudo, da comunidade a seu redor para preservar o meio ambiente e deleitar turistas. Cahuita, menor e mais jovem, tem desafio maior à frente, pois a despeito de ser marinha 93% da sua área, esta é parcela colocada sempre em segundo plano na gestão ambiental no País – tal como, de resto, acontece no Brasil.

Mas talvez as lições deixadas pelo processo bem-sucedido de construção do entendimento entre povo e poder público lhe dê ânimo suficiente para enfrentar uma Natureza que reage, perceptivelmente, à ação do Homem.

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